A influência da Inteligência Artificial (IA) na fotografia contemporânea tem se tornado cada vez mais evidente e consistente. Em um período relativamente curto, ferramentas de edição automatizada, algoritmos de reconhecimento de imagem, sistemas de geração de conteúdo sintético e aplicativos de pós-produção se multiplicaram, oferecendo a fotógrafos — e mesmo a usuários amadores — recursos avançados para criar, modificar ou mesmo “inventar” cenas e retratos com uma facilidade impressionante. Muitas atividades que antes exigiam tempo, expertise técnica e um extenso conhecimento de equipamentos e de programas de edição hoje podem ser realizadas, ao menos parcialmente, por algoritmos treinados.
Esse panorama, contudo, não deve ser visto apenas como vantagem ou como ameaça imediata. É preciso entender de que forma essa tecnologia vem interferindo no campo fotográfico, quais setores serão mais afetados e que tipo de implicações éticas, legais e sociais decorrem dessa rápida evolução.
A ascensão de plataformas capazes de gerar imagens a partir de descrições em linguagem natural (como as chamadas “text-to-image”) é um exemplo contundente de como a IA pode revolucionar a maneira de produzir conteúdo visual.
Antes, para a criação de uma determinada cena, o fotógrafo precisava não apenas de seu conhecimento sobre iluminação, composição e direção, mas também de um local adequado, de modelos, de recursos para a produção e de pós-produção.
Com as novas IAs generativas, basta uma descrição detalhada de como se quer a imagem, e o algoritmo cria algo inteiramente novo — ou uma mescla sofisticada de bilhões de referências absorvidas durante seu treinamento. Isso reduz drasticamente o tempo de produção de uma fotografia e, potencialmente, pode dispensar uma variedade de profissionais.
No entanto, esse impacto não se restringe a fotógrafos de estúdio: a capacidade de gerar cenas fotorrealistas (ou mesmo manipular facilmente imagens já existentes) tem implicações tanto no fotojornalismo quanto no cinema, na publicidade e em praticamente qualquer área que dependa da criação ou tratamento de imagens.

Cecília. Minha criação com IA. Tem alguns problemas que podemos observar, mas, já faz parte do meu universo fotográfico. Quase alguém da família. Cecília foi criada por um prompt feito sem grande talento.

Uma tentativa despretensiosa de se produzir uma imagem “publicitária”. Mesmo sendo feita sem grande técnica pode “enganar” alguns leitores.
A possibilidade de substituição de fotógrafos e cinegrafistas por sistemas automatizados é motivo de preocupação em diversos círculos profissionais. Em especial, setores como o publicitário e o de marketing tendem a ser fortemente impactados.
Agências de publicidade podem optar por usar sistemas de IA capazes de gerar imagens de campanhas, produtos e modelos sem precisar organizar um ensaio fotográfico completo. Esse processo economiza tempo e recursos financeiros, além de oferecer flexibilidade ilimitada na alteração de cenários, na troca de cores e nas expressões faciais das pessoas retratadas.
Em vez de contratar um fotógrafo, um estúdio e uma equipe de produção, muitas empresas podem migrar para soluções inteligentes que façam boa parte do trabalho de criação. Esse movimento, obviamente, não elimina totalmente a necessidade de profissionais da imagem, mas tende a reduzir a demanda ou a reconfigurar drasticamente a forma de atuação no mercado.
Outro setor que pode ser profundamente impactado é o jornalístico. A credibilidade de uma fotografia sempre foi um pilar do fotojornalismo: o que está capturado pela câmera, em tese, reflete a realidade de forma relativamente neutra, mesmo sabendo que composições e escolhas estéticas também influenciam a leitura da imagem.
Com a evolução das técnicas de edição por IA, fica cada vez mais difícil distinguir rapidamente se uma imagem foi adulterada, se foi criada do zero ou se mantém alguma veracidade jornalística. Para o público em geral, a fotografia sempre foi considerada uma espécie de “prova” — um registro fidedigno dos fatos. Se essas manipulações e criações sintéticas se tornarem indiscriminadas, corre-se o risco de a fotografia perder aquele status privilegiado de representação confiável do real.
A questão da autoria surge como um debate fundamental nesse cenário. Uma fotografia convencional é assinada pelo fotógrafo, que é reconhecido como criador da imagem, ainda que existam outras influências (a equipe, o local, o modelo e assim por diante). Já no caso de uma imagem gerada por IA, quem seria o autor? O usuário que forneceu a descrição textual? A equipe que desenvolveu o algoritmo? Ou a própria IA, entendida como uma espécie de “ferramenta autônoma”? Embora a última opção pareça ainda distante do arcabouço jurídico convencional, é inegável que a contribuição criativa da IA ultrapassa as funções de uma simples ferramenta.
Quando o algoritmo reorganiza e gera elementos visuais originais a partir de seu banco de dados e de padrões aprendidos, o processo criativo ganha novos contornos. Diversos escritórios de advocacia e associações de proteção ao direito autoral já se debruçam sobre a delimitação de responsabilidade e autoria em casos de uso comercial de imagens produzidas por máquinas. Há também o debate ético sobre a apropriação de bancos de dados repletos de fotos que foram originalmente criadas por humanos. Muitas vezes, esse material é coletado sem que os autores originais tenham plena ciência ou recebam compensação adequada.
Um dos pontos mais sensíveis dessa evolução tecnológica é a veracidade das imagens que circulam na internet e nas redes sociais. Se antes era necessário ter conhecimento especializado e ferramentas relativamente caras para “manipular” fotografias de forma convincente, agora qualquer pessoa com acesso a aplicativos ou plataformas online pode produzir imagens falsas (deepfakes) com grande realismo. Isso traz implicações profundas para a sociedade, incluindo a propagação de notícias falsas, difamações, fraudes e manipulações políticas.
O receio de que as imagens geradas por IA se tornem tão comuns a ponto de iludir as pessoas não é infundado. A tendência, aliás, é que a sofisticação dessas técnicas avance ainda mais, dificultando a distinção entre o que é genuíno e o que é fruto de programação.

Do lado direito da fotografia temos Joseph Goebbels e Helene Bertha Amalie “LENI” Riefenstahl cineasta alemã.

Goebbels foi “retirado “da foto por um “photoshop” de laboratório. O que se desejava é insinuar que Hitler tinha uma caso com a cineasta. Aparentemente, mas não confirmado, era o próprio Goebbels quem mantinha essa relação.
Esse fenômeno pode abalar a própria noção de realidade que as fotografias detêm há mais de um século. Ao longo da história, a fotografia foi amplamente aceita como prova visual de algo que ocorreu. É verdade que manipulações sempre existiram, mas, na maioria dos casos, elas eram perceptíveis ou relativamente complexas de serem feitas.
Com a inteligência artificial, a manipulação e a criação de imagens ganham escala e fluidez, colocando em dúvida a capacidade do público de discernir entre o real e o fictício. Se a fotografia perder o status de veracidade, talvez ela seja percebida cada vez mais como um tipo de ilustração, uma imagem que pode ou não refletir a realidade, e que deve ser analisada com cautela e ceticismo. Isso pode transformar a forma como consumimos conteúdo e como confiamos em relatos visuais — especialmente em redes sociais, onde a origem de um conteúdo é muitas vezes duvidosa.
Outro aspecto interessante é a maneira como diferentes faixas etárias lidam com a credibilidade das imagens. Em linhas gerais, a geração mais jovem, que cresceu em meio a aplicativos de filtros, edição digital e compartilhamento instantâneo, tende a ter maior familiaridade com o conceito de manipulação de fotos e vídeos. É possível que esses jovens sejam mais céticos ou atentos quanto à veracidade do que veem nas telas, simplesmente porque desde cedo convivem com tecnologias que transformam a aparência de rostos, paisagens e objetos em questão de segundos. Em contrapartida, gerações mais velhas, criadas em um tempo em que a fotografia era um registro quase incontestável da realidade, podem encontrar maior dificuldade em assimilar a ideia de que as imagens podem ser produzidas ou alteradas tão facilmente. Esse contraste geracional sugere que a discussão sobre veracidade será também um debate educacional, envolvendo a necessidade de formar consumidores de imagens com maior senso crítico e repertório técnico para identificar possíveis fraudes ou criações digitais.
Ao mesmo tempo, é possível que as gerações mais jovens, embora mais treinadas no uso de filtros e editores de imagem, sejam igualmente suscetíveis a erros de avaliação quando as manipulações são extremamente sutis. De nada adianta saber, em tese, que uma imagem pode ser falsa, se os sistemas de IA conseguem produzir fotografias praticamente indistinguíveis do real. Assim, educar todas as faixas etárias, mostrar exemplos de manipulação e desenvolver ferramentas de verificação de autenticidade devem ser prioridades para governos, escolas, plataformas de mídia e a sociedade como um todo.
Em síntese, a evolução da IA na fotografia contemporânea inaugura um cenário repleto de oportunidades, mas também de desafios. Ela pode acelerar processos de produção, gerar novas formas de expressão artística e baratear custos em campanhas publicitárias ou na cobertura de eventos. Por outro lado, traz consigo questionamentos urgentes sobre a substituição de profissionais, a manipulação e a autoria de imagens, o abalo no status de veracidade que a fotografia historicamente detém, e o risco de que o público seja cada vez mais exposto a conteúdos enganosos. Ainda que não se possa prever com exatidão como a fotografia e o cinema vão se adaptar a essa revolução, é certo que a IA modificará a percepção do que é real ou autêntico. Restará a todos — fotógrafos, cineastas, comunicadores e público em geral — encontrar maneiras de conciliar a criatividade e a eficiência tecnológica com a transparência e a ética necessárias a uma convivência saudável nesse novo ecossistema de imagens.
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