Dois nomes fundamentais da fotografia documental britânica do pós-guerra, Tony Ray-Jones e Martin Parr, representam momentos distintos na observação crítica — e frequentemente irônica — da vida cotidiana inglesa. Embora separados por uma geração, ambos se dedicaram a registrar os rituais sociais, os comportamentos coletivos e as contradições da classe média do Reino Unido, mas o fizeram a partir de estéticas e sensibilidades profundamente diferentes.

Ray-Jones atuou nos anos 1960 com um olhar melancólico e afetuoso sobre uma Inglaterra em transformação, enquanto Parr, a partir dos anos 1980, radicalizou esse mesmo impulso documental com imagens saturadas, sátira visual e crítica escancarada ao consumismo e à homogeneização cultural.

Este artigo propõe um paralelo entre os dois, explorando seus contextos, linguagens visuais e legados, a fim de compreender como, por caminhos distintos, ambos nos oferecem retratos desconcertantes e reveladores da sociedade britânica moderna.

Tony Ray-Jones (1941–1972): O Cronista Melancólico da Inglaterra Cotidiana

Nascido em 1941 na cidade de Wells, em Somerset, Tony Ray-Jones teve uma formação que mesclava rigor técnico e sensibilidade visual. Estudou design gráfico na London School of Printing antes de seguir para os Estados Unidos, onde se graduou em fotografia pelo Rochester Institute of Technology. Lá, entrou em contato com o trabalho de grandes nomes da fotografia documental americana, como Walker Evans e Garry Winogrand. No entanto, mesmo sob forte influência internacional, seu olhar permaneceu profundamente britânico — irônico, observador e nostálgico.

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Tony Ray Jones, blackpool, 1966

Entre 1966 e 1969, Ray-Jones percorreu o Reino Unido com a intenção de documentar o que chamou de “espírito inglês” — um modo de vida ameaçado pela modernização e pela padronização cultural. Suas imagens captam cenas aparentemente banais: concursos de beleza, excursões à beira-mar, festivais de província e tardes em jardins públicos. No entanto, sob a superfície desses eventos populares, emergem composições densas, cheias de pequenos gestos, expressões deslocadas e simbolismos discretos.

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trooping the colour, London-1967 , Tony Ray-Jones

Trabalhando exclusivamente em preto e branco, o fotógrafo demonstrava domínio técnico, senso de timing e um humor agridoce que conferem às suas imagens um tom de estranhamento. Seu livro A Day Off, publicado postumamente em 1974, tornou-se uma referência incontornável da fotografia documental britânica. Nele, a Inglaterra aparece como uma colagem de absurdos cotidianos, marcada por certa excentricidade cômica, mas também por uma melancolia profunda.

Ray-Jones morreu precocemente, aos 30 anos, vítima de leucemia. Apesar da curta trajetória, deixou um legado duradouro: influenciou toda uma geração de fotógrafos britânicos, entre os quais se destaca Martin Parr, que o reconhece como uma de suas maiores inspirações.

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glyndebourne

 

Martin Parr (1952–): O Satírico das Cores Saturadas

Nascido em 1952, em Epsom, Surrey, Martin Parr desenvolveu uma das obras mais reconhecíveis da fotografia documental contemporânea. Formado pelo Manchester Polytechnic, Parr começou sua carreira nos anos 1980, rompendo com a tradição da fotografia humanista e monocromática praticada por muitos de seus antecessores. Sua estética, marcada por cores vibrantes, uso de flash direto, composições frontalmente agressivas e um olhar desabusado sobre o cotidiano, inaugurou uma nova etapa na crítica visual à cultura britânica.

GB. England. New Brighton. Sunbathing. 1985.

Seu projeto mais emblemático, The Last Resort (1983–1986), foi realizado em New Brighton, uma cidade litorânea decadente próxima a Liverpool. As imagens retratam famílias de classe trabalhadora em férias: corpos expostos ao sol, crianças entre latas de refrigerante e lixeiras, cenários saturados de plástico, gordura e consumo. A série causou desconforto imediato entre os puristas do documentalismo britânico, mas também foi saudada como um ponto de inflexão — ao capturar, com ironia ácida, as tensões do neoliberalismo emergente na era Thatcher.

Ao contrário do olhar melancólico e delicado de Ray-Jones, Parr oferece um espelho distorcido da sociedade de consumo: exagerado, cínico e, muitas vezes, provocador. Sua fotografia flerta com o kitsch e o vulgar, assumindo que o grotesco também é parte do cotidiano.

A partir dos anos 1990, Parr ampliou seu repertório, tratando de temas como o turismo globalizado, o consumo de massa, as disparidades sociais e os rituais políticos — tudo com o mesmo olhar inquisitivo, frontal e desconcertante. Tornou-se membro da prestigiosa agência Magnum Photos em 1994, o que consolidou sua projeção internacional.

Embora criticado por alguns como cínico ou desrespeitoso, Parr transformou sua linguagem em uma ferramenta antropológica da era visual contemporânea. Seus projetos habitam a interseção entre fotografia, sociologia e arte contemporânea, sempre desafiando o espectador a refletir sobre o que vê — e por que vê.

 

Convergências e Diferenças

Apesar de separados por uma geração, Tony Ray-Jones e Martin Parr compartilham um interesse central: o exame atento — e muitas vezes irônico — da vida cotidiana britânica. Ambos enxergaram nas rotinas sociais, nos rituais populares e nos espaços públicos uma rica matéria simbólica. No entanto, os caminhos que trilharam para representar esse universo não poderiam ser mais distintos.

Ray-Jones, trabalhando com preto e branco e composições complexas, buscava capturar múltiplos planos de ação em uma única imagem. Sua fotografia sugere uma observação silenciosa, por vezes afetuosa, de um país em transição. Há em suas imagens um tom de melancolia, como se cada clique fosse uma tentativa de preservar algo prestes a desaparecer — um modo de vida, um espírito coletivo, uma cultura prestes a ser consumida pela modernidade.

Parr, por sua vez, radicaliza a linguagem documental: emprega cores saturadas, uso ostensivo do flash e um enquadramento direto, quase intrusivo. Se Ray-Jones registrava os ingleses com certo carinho excêntrico, Parr os confronta com um espelho deformante — onde o grotesco, o banal e o kitsch não são evitados, mas amplificados. Sua crítica é mais explícita, visualmente desconcertante e frequentemente desconfortável para o espectador.

Enquanto Ray-Jones se posicionava como um cronista nostálgico do passado recente, Parr opera como um antropólogo provocador da cultura de consumo contemporânea. Um fotografa o fim de uma era; o outro, os excessos da era seguinte.

Ambos, no entanto, compartilham um raro talento: transformar o cotidiano em campo simbólico e político, e fazê-lo com inteligência, humor e precisão estética.

Legado

Tony Ray-Jones foi um precursor. Seu olhar singular sobre a vida britânica nos anos 1960 abriu caminho para uma nova forma de fotografia documental: mais pessoal, irônica e observadora. Martin Parr ampliou esse caminho, levando a crítica social para o campo da arte contemporânea, com séries que circulam entre o fotolivro, a galeria e a antropologia visual.

Juntos, representam duas etapas da mesma jornada: a tentativa de compreender, por meio da imagem, os paradoxos culturais da Inglaterra moderna.


Texto de Thales Trigo.

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Thales Trigo